eschatologie.free.fr

ACOLHIMENTO    ÍNDICE    SEGUINTE

CAPÍTULO 2

O JUÍZO FINAL DA PESSOA

 

A escolha final

A morte é a entrada definitiva no outro mundo

O juízo final

 

A escolha final

 

Johann escolhera. A sua escolha fora definitiva, total e livre. A alegria parecia encher todo o espaço. Johann estava salvo. Acabava de realizar a palavra da Sagrada Escritura: “Há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de se arrepender[1]” Como canta o livro do Apocalipse[2], Johann acabava de vencer o Acusador, “aquele que o acusava diante de Deus”, graças ao olhar que dirigira para o Filho do Homem, para o “Cordeiro”.

“Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte.”
 

Depois de termos visto a importância dos instantes que concluem a nossa vida na terra e preparam o nosso destino eterno, é fácil compreender o sentido desta oração. Rezar pelos agonizantes é um dos maiores apostolados. Salva os indecisos. Faz com que se entreguem com toda a alma ao amor de Deus. Assim será para nós. Quando na hora da morte compreendermos a que ponto Maria não cessou de rezar a Deus pela nossa salvação, logo que virmos com os nossos olhos, a angústia daqueles que na terra rezam por nós, compreenderemos melhor a que ponto as propostas do demónio, no entanto sedutoras, não passam de fumo. Tantos são os que nos esperam ver na felicidade do céu. Que é, diante disto, a falsa liberdade solitária proposta por Satanás?

Precisamos agora continuar a nossa viagem através da morte, sem deixar de nos apoiar sobre o ensinamento da Igreja, dos santos e dos teólogos. Seguimos o caminho de Johann. Deixámo-lo no momento em que escolheu converter-se à vida proposta por Jesus. Recordemos que escolheu em toda a liberdade e lucidez, conhecendo perfeitamente o caminho proposto pelo demónio.

Da mesma forma, poderíamos ter contado a história que viveu Santa Teresa do Menino Jesus. A fase visível da sua morte é-nos relatada pelas sua irmãs. Experimentou angústias terríveis. O demónio aproximou-se dela nos últimos momentos, procurando mergulhá-la no desespero, porque era essa uma das fraquezas que sabia poder abalá-la. Mas Teresa, na noite total, minada pelo sofrimento físico, não cessou de rezar a Jesus, em quem mesmo não tinha mais a impressão de acreditar[3].

Depois, o seu rosto iluminou-se. Encontrou Jesus e ficou surpreendida. Ela, a maior santa dos tempos modernos, ela, que jamais tinha deixado de viver na sua intimidade, não tinha compreendido a que ponto era amada! Maria estava presente com Jesus, porque tinha desejado a sua presença. Estavam também a mãe, o pai, todos quantos tinha amado. Como Johann, liberta do sofrimento, experimentou essa fase intermediária a que chamámos “hora da morte” e que precede a separação total do corpo carnal e deste mundo. Viu Pranzini, o criminoso por quem tinha rezado durante a infância. Emanavam dele reconhecimento e gratidão: “Salvastes-me!”. O demónio aproximou-se de Teresa. Fez-lhe o seu discurso. Utilizou todo o seu poder de retórica. Mas que podia o príncipe dos demónios diante da humildade duma santa? Ela era inacessível porque não parava de olhar para Jesus: “Tanto tempo te esperei”, dizia-lhe. O demónio estava humilhado. Se um puro espírito pudesse experimentar sentimentos, seria preciso dizer que sufocava de raiva e de impotência. Uma vez mais, uma simples criança não lhe dava sequer a honra de o escutar. Se tinha encontrado algum poder sobre Johann, o jovem soldado alemão, é que ele tinha amado o pecado durante a sua vida na terra. Tendo vivido no orgulho, tinha-lhe tomado o gosto. Mas Teresa era humilde e amava o seu Deus. Tinha-o amado até à morte, uma morte terrível. O demónio teve de se calar e ir-se embora. Teresa era do mundo de Deus. A sua escolha estava feita, mais nada a retinha na terra.

A morte é a entrada definitiva no outro mundo[4]

(Coisa, na minha opinião, mais que provável. Julgue o leitor)

A morte física podia terminar a sua obra. O que é a morte senão uma separação da pessoa do seu corpo carnal, sem possibilidade de retorno? Johann estava diante do rosto de Jesus e de Maria. Convidaram-no a aproximar-se, a penetrar sem medo no outro mundo. Ouvia o som das suas vozes. Johann vivia docemente o último momento da morte. Faltava-lhe simplesmente transpor uma espécie de porta, uma passagem de que compreendia intimamente que o separaria para sempre de todo o retorno carnal à terra, pelo menos até ao fim do mundo e à ressurreição. Não tirava os olhos dos habitantes do Céu. Via com os seus olhos os olhos deles, ouvia com os seus ouvidos os seus convites para que se aproximasse. Transpôs a passagem. Tinha entrado no Outro mundo. Estava morto. 

Desde há alguns anos, a investigação teológica sobre a hora da morte, foi confrontada com uma nova experiência, cada vez mais frequente, graças à medicina. Pessoas que estiveram perto da morte graças a uma paragem cardíaca, puderam ser reanimadas. O seu testemunho permite rectificar certas conclusões que não parecem mais tão seguras como antigamente. Com efeito, as conclusões dos teólogos antigos, consistiam em descrever a morte como a separação do espírito do moribundo de tudo quanto nele é corporal: “perde não apenas o corpo físico mas também as faculdades psíquicas, aquelas que estão ligadas ao órgão do cérebro (sensações, imaginação, memória das imagens, paixões sensíveis”, diz S. Tomás de Aquino. Não subsiste, segundo ele, senão um puro espírito (inteligência e amor naquilo que este tem de voluntário). Nesta hipótese, um morto esquece a forma do rosto da mãe, mas lembra-se da sua personalidade.

Ora, o testemunho dos resgatados, é unânime e a sua experiência parece não dever ser posta em dúvida. Quando se vêem junto de parentes falecidos há muito, na sua morte iminente, possuem todos uma espécie de corpo psíquico visível e dotado de sensações. Trata-se de um verdadeiro corpo, embora não palpável, porque separado de toda a carne. É visível, pelo menos para os habitantes do além, e é sede de uma vida sensível. Se é sede duma vida sensível (se vê corpos luminosos, ouve sons, etc.), é que é feito de uma forma de matéria, provavelmente de um estado de matéria desconhecido ainda, que não é nem o dos corpúsculos, nem o das ondas[5]. É à imagem do corpo astral dos budistas.

 

Que é então a morte? Devemos, parece, modificar-lhe a definição teológica. Ela não é a separação do espírito e do corpo todo. Implica apenas a perda de uma parte do corpo, a carne, sede das faculdades vegetativas. Portanto, os mortos não são puros espíritos à imagem dos anjos, mas pessoas humanas dotadas de um rosto sensível, reconhecível no outro mundo.[6]

Por outro lado, a morte é um fenómeno definitivo. Jamais se torna a voltar do além, excepto por milagre, quer dizer, pela vontade de Deus que contradiz pontualmente as leis da biologia (a ressurreição de Lázaro é um exemplo disso). Ao nível do corpo que permanece na terra, a morte caracteriza-se pela sua destruição definitiva (depois de uma dezena de minutos sem oxigénio, o cérebro jamais será reutilizável. A morte é clínica.) No mesmo momento, a pessoa separada da carne, “a alma espiritual e psíquica” passa simbolicamente uma espécie de porta. A convite dos anjos, entra no outro mundo. Compreende que deixa a peregrinação terrestre. Abraão mostra que a separação com o mundo cá de baixo é definitiva[7]: “Não é tudo. Entre nós e vós, um grande abismo foi fixado, a fim de que aqueles que quisessem passar daqui para aí não o possam, e que não se atravesse também daí de baixo para cá.[8]"

Isto não significa que um morto nunca vem à terra. Pelo contrário, santos do paraíso não param de aparecer. Mas não aparecem com o seu corpo de carne, antes de Deus lho ter dado.

O juízo final

(Coisa certa)

A irmã Teresa do Menino Jesus ouviu que Jesus lhe falava. As palavras eram acompanhadas de todo o seu significado interior: “Teresa, bendita és tu entre todas as mulheres. Amas Deus e os teus irmãos, mais que a tua própria vida. Entra na Visão do teu Deus, teu esposo.” Esta palavra escutada por Teresa, é o que a Igreja chamou o seu “juízo final”. Para Johann, em que subsistiam, apesar do seu grande amor por Jesus, alguns restos de pecado a purificar, foi um pouco diferente. “Johann, bendito és tu entre todos os homens. Porque foste muito perdoado, amaste muito. És digno da vida eterna. Quando a tua alma tiver acabado a sua purificação, verás Deus face a face.” Este juízo é o final, porque Johann como Teresa não mais podem afastar-se de Deus. A sua escolha é de tal modo lúcida que não voltam atrás. Veremos oportunamente, que o mesmo se passa com as almas que escolhem o inferno.

 

O juízo final da alma tem lugar, portanto, depois da morte. Tudo quanto descrevemos a propósito da “hora da morte”, não é senão a preparação para este julgamento vindo de Cristo. O homem é conduzido na sua morte a dizer sim ou não à vida da graça. Depois da morte, Cristo ratifica a sua escolha[9].

Ninguém pode escapar à necessidade de escolher. Cada um, pois, chega ao outro mundo, tenha ele sido budista, ateu, muçulmano ou cristão, com uma vontade explicitamente voltada ou desviada do amor de Deus. Cada um se tornou livremente discípulo de Cristo ou discípulo do Anticristo. Então, ratificando esta escolha da alma, Jesus pronuncia a sentença eterna, o julgamento último. Se a alma escolheu o amor, revela-lhe que receberá que deseja. Há uma tal força nesta palavra que a alegria daquele que a recebe é imensa. Ele acredita que verá Deus. Sabe que viverá para a eternidade, no paraíso. Isso realizar-se-á em tempo oportuno, porque Jesus falou. Não ousamos imaginar a alegria daquele que, sabendo-se no entanto indigno, recebe uma tal promessa.

Da mesma forma, aquele que ouve pronunciar a sentença da condenação, sabe que é uma palavra definitiva, como o é a sua escolha egoísta. Veremos no capítulo seguinte, que é por causa da plena lucidez e liberdade da escolha dos condenados.
 

Todos os homens, sem excepção, passam pelo julgamento. Cada um recebe de Jesus a sentença que lhe convém. Os que amam Deus não se julgam a si mesmos dignos da vida eterna, de tal forma têm consciência da sua imperfeição. Maria, ela própria, a santa Imaculada, via-se mais que qualquer outra miserável e pó diante de Deus. Nunca tinha pecado mas toda a sua vida se reconhecia como miserável diante de Deus[10] . Recebeu, pois, de seu Filho, a revelação do que merecia.

Quanto às almas obstinadas pelo orgulho, bem quereriam ver Deus. Acham-se dignas dessa felicidade. Desejam-no mesmo, porque sabem que só isso as pode fazer felizes. Mas preferem tudo perder a baixarem-se à humildade. Diante de um tal orgulho, diante da presunção em querer entrar à força na visão da Trindade, Jesus é obrigado a manifestar-lhes que não merecem ver Deus: “Afastai-vos de mim, malditos. Não vos conheço[11]”. Cada um é, pois, julgado por Jesus. Ninguém é capaz de se julgar a si mesmo, para bem e para mal. No entanto, este julgamento é verdadeiro porque corresponde ao fundo da alma.


NOTAS

[1] Lucas 15, 7.

[2] Apocalipse 12, 10.

[3] É a noite do espírito, descrita por S. João da Cruz.

[4] Tento dar aqui uma nova definição teológica da morte, baseando-me nas descobertas relativas à N.D.E.. Ela não faz senão tornar mais precisa a antiga definição: separação da alma e do corpo, com integração do psiquismo.

[5] Alguns físicos, confrontados com certas experiências no domínio dos corpúsculos mais pequenos que os átomos, falam da existência de uma “matéria psíquica”, de um estado da matéria que muda o seu comportamento quando é observada. Todo um novo domínio parece abrir-se à ciência física. Para a teologia, outras questões se colocam. Essa matéria está submetida à usura (a entropia) como toda a matéria que conhecemos na terra? Se sim, donde lhe vem a sua subsistência? S. Tomás teria respondido que a incorruptibilidade lhe vem da energia da alma ou do poder de Deus que decide, no outro mundo, fazer parar a entropia…

[6] O psiquismo sobrevive. As sensações permanecem. O outro mundo é pois um mundo sensível e não exclusivamente espiritual. Daí os testemunhos das pessoas que estiveram próximas da morte e que vêem paisagens magníficas, jardins luxuriantes. Não são sonhos mas a visão objectiva do outro mundo. Os paganismos antigos conheciam-no. Os romanos descrevem , por exemplo, o paraíso: “Se te encontrares completamente só, cavalgando verdes pastagens com o sol no rosto, não te perturbes. Porque estás nos campos elíseos e já estás morto. O que fizeste na vida ressoa para a eternidade”. (Alocução do General romano Maximus, “Gladiator”, Ridley Scott, 2000). O Concílio Vaticano II dá testemunho da parcela de Espírito e de verdade que receberam, mesmo se ignoravam a razão de todas estas coisas.

[7] Mateus 16, 26.

[8] Veremos, no capítulo consagrado ao purgatório, que podem existir almas que permanecem bloqueadas na morte, quer dizer, entre este mundo e o outro. O seu apego à terra é tão grande que este contratempo lhes é útil para progredirem. A carne, no entanto, está morta. Permanecem errantes na terra, durante, às vezes, séculos. Estão no que o Antigo Testamento chamava o sheol, o Hades, dito de outra forma, a morte. Cristo ainda não lhes apareceu na sua glória.

[9] A igreja proclama de forma dogmática este facto pela voz de Bento XII, desde o século XIII: “Pela presente constituição, que ficará para sempre em vigor, e pela nossa autoridade apostólica, definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas de todos os santos que deixaram este mundo, estão no Céu com Cristo imediatamente depois da morte e a purificação de que falámos para aquelas que terão necessidade dela, antes mesmo da ressurreição do corpo e do Juízo geral, e isto desde a Ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo ao Céu.

Além disso, definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas daqueles que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente depois da sua morte, ao inferno, onde são atormentadas pelas penas infernais.”

[10] Ofereceu mesmo as duas rolas pelo pecado depois do nascimento de Jesus, ela que concebeu de modo virginal.

[11] Mateus 25, 12.

 

ACOLHIMENTO    ÍNDICE    SEGUINTE