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CAPÍTULO 5

AS CRIANÇAS MORTAS SEM BAPTISMO

[1]

 

 

A existência do Limbo das crianças faz parte da fé da Igreja, mas não a sua eternidade

Que acontece às crianças mortas sem baptismo?

 

A existência do Limbo das crianças faz parte da fé da Igreja, mas não a sua eternidade

(Coisa certa)

Durante séculos, na sequência da opinião de St. Agostinho e S. Tomás de Aquino anteriormente citada, os católicos acreditaram que as crianças mortas sem baptismo[2] nunca iriam para o paraíso. Esta doutrina nunca foi ensinada pela Igreja. O dogma que sempre foi ensinado não vai tão longe. É resumido nesta frase do Concílio de Florença[3]: “As almas daqueles que morrem em estado de pecado original descem de imediato ao inferno para aí serem punida por penas desiguais”. O papa Pio VI[4] chama a atenção para que este inferno, habitualmente chamado “limbo das crianças” nada tem a ver com o inferno dos condenados. As crianças não têm qualquer ódio a Deus[5] . Não têm pecado pessoal. Implica uma separação de Deus (o dano) mas nenhum sofrimento (não há a pena do fogo), porque estas crianças são inocentes. Nada mais foi alguma vez precisado.

 

O raciocínio de S. Tomás é o seguinte: uma criancinha, por inocente que seja, está separada de Deus em consequência da escolha de Adão e Eva, escolha lúcida feita em nosso nome e que Deus respeita. Não é culpada de nenhum pecado pessoal. Mas, assim que é concebida, não possui no coração a presença de amor da Trindade. Não vem habitar nela familiarmente e a criança não pode responder com o seu amor. Os primeiros pais da humanidade, Adão e Eva são, segundo a fé católica, um verdadeiro homem e uma verdadeira mulher, não um casal simbólico. Eis poucos os pontos relativos a eles que fazem parte da fé católica:

1. Foi o próprio Deus que criou o homem e a mulher e lhes insuflou uma alma espiritual e imortal;

2. Os nomes de Adão e Eva, apesar do sentido simbólico, designam um homem e uma mulher reais, os nossos primeiros pais.

3. Adão e Eva foram criados perfeitos: por causa do seu lugar de primeiros pais de todos os homens, Deus comunicou-lhes dons naturais e dons preternaturais. Receberam também a graça sobrenatural que os tornou totalmente próximos de Deus. Esta graça chama-se graça original.

4. O demónio aproximou-se deles e seduziu-os. Revoltaram-se contra Deus e perderam, em consequência, a graça original e os dons preternaturais que a acompanhavam.

5. Sendo responsáveis pela humanidade aos olhos de Deus, separaram de Deus, pelo seu pecado, todas as gerações que haveriam de nascer deles. É o pecado original.

O papa Paulo VI, no Credo que deu à Igreja em 1968, escreve o seguinte: “Acreditamos que em Adão todos pecaram, o que significa que a falta original cometida por eles fez cair a natureza humana, comum a todos os homens, num estado onde carrega com as consequências dessa falta e que não é aquele onde se encontrava ao princípio, nos nossos primeiros pais, constituídos na santidade e na justiças e onde o homem não conhecia nem o mal, nem a morte. É a natureza humana assim caída, despojada da graça que a revestia, ferida nas suas próprias forças naturais e submetida ao império da morte, que é transmitida a todos os homens, e é neste sentido que todo o homem nasce no pecado”. A Igreja, na sequência de S. Paulo, ensina uma verdade muito mais difícil de acreditar: “Adão e Eva ao escolherem ser livres relativamente a Deus, ao separarem-se dele, comprometeram-se POR NÓS”. Arrastaram-nos com eles, em todo o conhecimento de causa. S. Paulo, exprime-o deste modo: “Por um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim, a morte passou para todos os homens porque todos pecaram”. Isto foi permitido por Deus porque ele sabia fazer sair daí um maior bem para a humanidade inteira. Nos nossos dias, a humanidade e o seu sofrimento, vindo da escolha de Adão e Eva, permitem uma santidade maior que aquela que seria sem o pecado original.

As crianças são, portanto, todas concebidas separadas da presença de Deus. Mas, ao menor desejo dos pais, a escolha de Adão e Eva é anulada e, mesmo antes da criança nascer, o Espírito vem habitar no seu coração. Não vemos, senão muito raramente, um efeito exterior deste mistério, mas ele é uma realidade. Habitualmente, esta habitação realiza-se pelo baptismo de água, imediatamente após o nascimento. Mas se a criança morre antes, um simples desejo dos pais, expresso na sua oração, basta. De imediato, Deus os escuta e vem suprimir neles a falta original. É uma forma de baptismo de desejo[6]. A Igreja aproveita para lembrar a responsabilidade dos pais. Mesmo se perdem o filho, é seu dever pedir para ele o baptismo porque o Espírito Santo não vem às crianças senão em obediência ao desejo dos pais.

Segundo S. Tomás de Aquino, se uma criança for completamente abandonada pelos pai ao ponto destes não terem rezado por ela, entra no outro mundo afastada de Deus. Está separada dele para a eternidade porque, é um dogma, todo o ser morto sem esta graça está condenado para a eternidade. É certo que não tem culpa. Portanto, não sofre da ausência de Deus. Permanece simplesmente assim, sem mesmo desejar Deus de tal modo é pequenino, numa felicidade natural chamada limbo.

Esta doutrina é lógica. O raciocínio é perfeito. Não lhe falta senão um elemento: Deus é amor e - é também um dogma -, propõe a todos o seu amor. O Concílio de Quierzy confirma-o solenemente: “Deus todo poderoso quer que todos os homens, sem excepção, sejam salvos, se bem que nem todos o sejam. Que alguns se salvem, é dom daquele que salva; que alguns se percam, é o salário daqueles que se perdem.” Ora, as crianças não merecem este salário. De forma alguma rejeitaram Deus. Ignoram simplesmente o seu mistério.

É por isso que é preciso falar doutra forma. Apoiando-nos na fé da Igreja, é possível descrever o que vivem as crianças mortas sem baptismo. É impossível que sejam deixadas no limbo para a eternidade. Recentemente, o Catecismo da Igreja Católica veio dar-nos uma confirmação inesperada desta opinião: “As palavras de Jesus nos evangelhos, permitem-nos esperar que haja um caminho de salvação para as crianças mortas sem baptismo. Tanto mais premente é também o apelo da Igreja para não impedir as criancinhas de aceder a Cristo pelo dom do santo Baptismo.”[7]

 

Que acontece às crianças mortas sem baptismo?

(A investigação sobre a forma como as crianças entram no paraíso não está decidida. Julgue o leitor)

“Sou um rapaz. A mamã concebeu-me. Seis semanas depois, decidiu não me conservar. O meu pai tinha-a abandonado. Pensou que mais valia eu não existir. Eu dormia. Não dei conta de nada. Soube a minha história depois. Acordei quando já não estava no seu ventre. Já estava longe da clínica. Voava por cima deste mundo. Pessoas luminosas estavam à minha volta. Disseram-me que me adoptavam. Pediram a Deus que viesse. De imediato, senti em mim uma doce presença.” 

A alma das crianças é criada por Deus na concepção

Se a Igreja católica, pela voz de Pedro se opõe com tanta força ao aborto, é que acredita com toda a sua convicção que este ser que se faz desaparecer, se bem que dotado da aparência de uma única vida biológica, já recebeu com certeza a sua alma espiritual. Esta alma, sede da inteligência e da vontade, não é senão o que sobrevive à morte. A sua existência não pode ser posta em dúvida no plano da revelação.

Uma dúvida subsiste, no entanto, no ensinamento da Igreja: quando é que esta alma criada por Deus é dada à criança? No século XII, S. Tomás de Aquino inclinava-se para o sexto mês depois da concepção. Não foi esse o momento em que João Baptista, visitado por Maria, tremeu no ventre da mãe? Se for assim, o aborto até ao sexto mês não seria um “crime abominável”. Não seria um crime no sentido estrito, um homicídio, mas um simples pecado contra a vida que está para vir e que ainda não veio. S. Tomás não tinha na época todos os instrumentos da fé de que dispomos hoje.

No entanto, é marcante como ele não viu o seguinte: Maria recebe o anúncio do anjo. E diz "que me seja feito segundo a tua palavra". No dia seguinte, sem dúvida, no dia da visitação vai a casa de Isabel e assim que a encontra, produz-se uma osmose, de alma a alma, entre o seu filho (Jesus) e o filho de Isabel (João): "O meu filho estremeceu no meu seio", testemunha Isabel. Tudo isto é mais que indicativo, no sentido teológico, duma muito rápida animação do menino Jesus, portanto de nós próprios, porque o Verbo segue em tudo a natureza humana quando ela não está ligada ao pecado...

Outro sinal concordante: em 1854, o Papa Pio IX proclamava como uma certeza vinda do alto a Imaculada concepção da Viragem Maria. Esta revelação parece sem relação com o aborto. Nada disso. O facto de Maria ser imaculada na sua concepção, significa que vivia, desde a concepção, da presença de Deus, da mesma maneira que Eva assim vivia no jardim do Éden. Se Deus estava presente, é porque Maria o recebia na sua alma. O facto, por outro lado, da concepção da Maria ser festejada em 8 de Dezembro, ou seja, nove meses antes do seu nascimento, não deixa qualquer dúvida sobre o que se deve entender por concepção. Maria é da raça humana, como toda a criança que vai nascer. Tudo indica, pois, que, para ela como para nós, a alma é dada no momento da concepção.

Do limbo à Visão beatífica

Que acontece a estas crianças? Santa Teresa de Lisieux dizia com razão: “Uma criancinha nunca vai para o inferno”. Mostrava que a hipótese do limbo, proposta por St. Agostinho se engana sobre Deus. Deus não tem necessidade que uma criança seja baptizada com água para lhe dar o baptismo da sua presença.

Para ser introduzido na salvação ou, pelo contrário, rejeitá-la, são necessárias três condições:

1. Possuir a capacidade natural (inteligência e vontade activas) de se dirigir para ela quando é proposta.

2. Que esta graça lhe seja proposta pela pregação do Evangelho e do dom do Espírito Santo.

3. Responder concretamente sim a esta graça e dirigir-se a Deus e ao próximo num acto de caridade.

Os inocentes são primeiro adoptados por dois pais do Céu. Depois são baptizados.

(Coisa não decidida. Julgue o leitor)

Quando uma criança morre e é abandonada pelos pais ou pela Igreja da terra, é de imediato adoptada por voluntários da Igreja do Céu. É verdade que a Igreja nunca dá a graça do baptismo sem que os pais o peçam. Felizmente, milhões de homens e anjos, vêem essa criança que desliza entre dois mundos. Trata-se do tempo do “limbo”. Dorme e assemelha-se ao bebé Moisés flutuando no Nilo no seu cesto de verga. A sua história é então semelhante sob todos os pontos, à do bebé Moisés[8]: “A filha do Faraó desceu ao rio para se banhar, enquanto as suas servas se passeavam na margem do rio. Viu o cesto entre os juncos e mandou a serva buscá-lo. Abriu-o e viu a criança: era um menino que chorava. Movida de compaixão, disse: ‘É um dos filhos Hebreus.’” Da mesma forma, esta criança é recolhida. O pecado original é nela extinto. Deus habita a sua alma.

A graça da presença de Deus, distingue-se da glória, pela seguinte propriedade: pode existir sem que seja exigido um acto livre. Comporta-se à maneira do amor não voluntário que um homem pode experimentar por uma mulher porque isso se lhe impõe. Inversamente, ninguém entra na glória sem um acto livre, da mesma forma que é impossível casar validamente de surpresa.

O mesmo se passa com as criancinhas mortas sem baptismo. Depois de adoptadas, a pedido dos seus novos pais, são lavadas do pecado original e recebem de maneira verdadeira a graça da presença de Deus. São santificados de forma passiva, sem vontade nem mérito da sua parte, graças ao desejo dos seus novos pais. Deus não proporá às crianças, senão num segundo tempo, a bem-aventurança da visão da sua essência, assim que o obstáculo ligado à sua pessoa, quer dizer, a sua incapacidade de escolher, desaparecer.

Quem adopta as crianças? Os santos do Céu, todos são voluntários. No entanto, são designados uma pai e uma mãe, bem como um anjo da guarda. A criança permanece um filho de homem e a sua natureza exige que seja educado por um homem e uma mulher, por dois amores que se harmonizem à maneira do Yin e do Yang dos taoístas. Trata-se do amor “doçura” e do amor “autoridade”. Os pais adoptivos não são de maneira imediata, Jesus e Maria. São-no de forma primeira, profunda e espiritual. Mas, como na terra, delegam esse papel. Na Comunhão dos santos, onde reina a maior delicadeza, pessoas que não puderam ter filhos na terra são provavelmente colocadas à frente. No Céu, todos se apressam em adoptar uma criança que chega, e a oração de milhares de pais e mães do Céu, provoca provavelmente que venha a ela o Espírito Santo. Desta forma, se existem milhões de crianças que morrem sem o baptismo sacramental, nunca se viu morrer um único sem o baptismo do Espírito Santo.

A duração do limbo das crianças, nunca foi definida pelo Magistério ordinário ou solene da Igreja. É provável que as crianças mortas sem baptismo, não permaneçam mais que um instante separadas da presença de Deus. Assim que passam para o outro mundo, são acolhidas e baptizadas pelos habitantes do céu. Juntam-se então com as crianças baptizadas pelos pais num lugar provisório cuja finalidade é permitir, através de uma educação, um crescimento suficiente do seu psiquismo e, depois, do espírito.

Podemos, pois, interpretar, as imprecisões destes textos do Magistério da seguinte maneira. As crianças não baptizadas estão no limbo, privadas de toda a presença de Deus até que sejam adoptadas, isto é, um instante. Todas as crianças, qualquer que seja o modo do seu baptismo, são então conduzidas a um lugar provisório, totalmente comparável ao “seio de Abraão” de que falavam os antigos judeus[9].

Não se trata ainda do outro mundo. Mas aí reina a graça da presença de Deus, simbolizada pela “água” de que vivia o pobre Lázaro[10]. Trata-se de facto de um inferno no sentido etimológico de “lugar inferior”, uma vez que ainda não vêem Deus face a face. As crianças estão unidas a Deus por todos os bens que recebem dele. Vêem Jesus e Maria acompanhados dos santos e dos anjos[11]. Trata-se realmente de uma visão dos sentidos, porque possuem psiquismo. Ao mesmo tempo, a Parusia de Cristo, revela-lhes a natureza do seu ser, o Evangelho, o mistério da caridade e a glória que lhes é proposta. Trata-se de uma pregação do Evangelho que, num primeiro tempo, lhes ilumina a inteligência sem que a sua escolha livre se possa realizar. Familiarizam-se com esta revelação. O demónio está presente por direito, uma vez que tem de fazer as suas propostas de orgulho. Além disso, recebem de Deus bens sobrenaturais como a graça íntima e mística da sua presença, depois, assim que são capazes, a caridade activa.

Desta forma, as crianças estão na alegria e na ausência do sofrimento do fogo. Vivem no entanto de um fogo, na medida em que ele é um desejo, uma vez que o seu espírito não repousa senão no fim para que foi criado. Assim que o obstáculo provisório da natureza, isto é, a incapacidade natural de escolher, desaparece, são introduzidas na visão plena[12].

 

Pode ser colocada aqui uma forte objecção. Se é assim, que diferença há entre as crianças baptizadas na terra pelos pais e as que não são? Neste relato, não mais se compreenderia a razão da insistência da Igreja no dever dos pais apresentarem o mais cedo possível, os seus filhos ao baptismo[13].

As crianças baptizadas antes da morte recebem desde esse instante o perdão do pecado original que as mantinha separadas da presença de Deus que as atrai. As crianças mortas sem baptismo, recebem a mesma graça um pouco mais tarde, pela vontade dos pais do Céu, Jesus, Maria, toda a Igreja dos santos. Mas os seus pais carnais ficam privados, por causa da ignorância ou descuido, de uma graça: a autoridade parental. São destituídos dos seus direitos e a criança é adoptada por duas outras pessoas que serão junto delas, para a eternidade, o seu pai e a sua mãe. Não basta, com efeito, para ser pais, dar fisicamente a vida. É preciso ainda mostrar-se digno disso no plano da educação.

 

Deus dá aos inocentes a capacidade de realizar um acto livre

 

Ninguém pode entrar na graça e na glória, ou mesmo ser conduzido ao inferno, sem uma escolha plenamente livre da inteligência. Existe necessariamente, antes da entrada no paraíso, uma forma de educação da psicologia e do espírito. As crianças começam a receber conhecimentos que substituem o que a educação e o ensino teriam tido que realizar durante a vida na terra.

Trata-se de saber como se realiza esse desenvolvimento. É fácil de constatar que, no início, o espírito dorme e não é capaz de nenhum exercício livre. A causa está na ausência do desenvolvimento do psiquismo.

Normalmente, na terra, não é senão provisoriamente, no decurso da infância, passando por etapas de progresso, que a criança pode realizar o seu primeiro acto livre. Antes, terá aprendido a servir-se da vida sensível, palpará, depois ouvirá, antes de acordar para alguns desejos. É natural para o espírito humano, desenvolver-se através deste tipo de caminhada progressiva.

Na morte, o psiquismo sobrevive à morte do cérebro[14]. Isso não significa que entrou na plenitude do seu desenvolvimento. Mas, apoiando-se no espírito que o faz subsistir, ele é dotado de um novo modo de exercício, mais leve e eficaz. Confrontado com a presença glorificada do corpo psíquico dos santos e com do corpo que os anjos se moldam, destinados à criança, o psiquismo desenvolve-se, depois, a inteligência e a vontade. Muito depressa se tornam capazes de uma escolha livre. Portanto, as crianças crescem no outro mundo, em sabedoria e inteligência. Uma vez realizados os progressos, banhados pela graça, as crianças fazem a escolha da sua liberdade por Deus ou contra Deus[15].

Alguns disseram que a educação podia ser realizada de uma só vez, tanto a beleza da glória dos santos do Céu tem um poder de despertar os sentidos e o espírito[16]. Não está excluído, ainda que pouco provável por causa do percurso e das etapas, que parecem mais convenientes à natureza humana.

 

Todas as criancinhas[17] escolhem o paraíso

 

Como é que as crianças acedem à visão beatífica? Exactamente da mesma forma que nós. Entram através de uma escolha livre. Deus actua para com eles, com esse objectivo. Uma vez que faltam às crianças três coisas, a saber, a capacidade de escolher (são muito pequenas), a proposta de escolher Deus (não são baptizadas), e a escolha efectiva (a caridade como amor recíproco e activo), faz-lhes os dois primeiros dons de uma vez, em vista do terceiro que é o acto meritório da visão beatífica.

Numa altura que Deus conhece, tornam-se, por causa da Luz que vem de Deus, capazes de escolher o bem e o mal. O demónio está presente mas impotente. Apresenta a liberdade do inferno. A escolha da criança não deve ser perfeitamente livre? A sua tentativa não tem efeito. Não há orgulho nem procura de poder no coração de um recém-nascido.

Dirigem-se naturalmente para onde os conduz o coração, a saber, para o bem e a luz. A partir desse instante, são introduzidos na visão de Deus. A partir do primeiro instante de capacidade de praticar um acto livre, por causa do seu estado separado do corpo carnal, dirigem-se completamente e sem erro para o objecto da sua escolha, sem que um novo crescimento seja possível. Nenhuma espera lhes é imposta. Vêem Deus face a face.

Todas as crianças escolhem o paraíso? Algumas não são tentados pelo orgulho? Recebem através da educação do céu, uma perfeição natural e uma harmonia psicológica maior que as crianças educadas na terra. Têm, pois, mais possibilidade de se orgulharem com a sua beleza e de se virarem para a liberdade do inferno. Portanto, alguns inocentes, não mais o sendo, serão condenadas.

É provável que todas as crianças sejam introduzidas na glória por causa da sua pouca propensão para se orgulharem dos dons recebidos de Deus. É o que quer significar a festa dos santos Inocentes, aquelas crianças mortas por Herodes na cidade de Belém. Igualmente, o papa Inocêncio IV escreve, a propósito das crianças mortas depois do banho do baptismo[18]: “Não são detidos por nenhum obstáculo e passam imediatamente para a pátria eterna.”

O demónio está presente por direito, uma vez que tem de sussurrar as suas propostas de orgulho. Tentativa ridícula, se alguma existe, porque, afirma a Teresinha, “uma criança, nunca vai para o inferno![19]” A presença do demónio tem pouco efeito sobre as crianças por três razões. A primeira vem-lhes da natureza. Entre as criaturas espirituais, permanecem os mais fracos em inteligência e vontade naturais. Constatam a sua pequenez com evidência ao compararem-se aos seres espirituais que as rodeiam. Têm poucos motivos de orgulho. A segunda vem da presença em seu redor, das almas glorificadas e dos anjos, que irradiam paz e alegria. Eles correspondem com harmonia ao seu coração, quer dizer à orientação inata da sua vontade. Seguem-nos com toda a naturalidade. A terceira vem-lhes do próprio demónio, cujo motivo de revolta lhes parece, na sua simplicidade, pouco atraente. Reclamar a Deus uma hierarquia dos seres fundada na inteligência e no poder natural, parece-lhes menos bem que a da humildade e do amor. Com tudo isto, podemos dizer que não há inocente que escolha o inferno.

Como vimos, o único pecado que conduz à condenação eterna sem que o perdão seja possível, é a blasfémia contra o Espírito Santo. Tal pecado vem do amor de si mesmo e da sua própria excelência levados até ao desprezo de Deus. É pouco provável que possam existir numa criancinha. Na verdade, a sua imperfeição natural torna-as pouco inclinadas ao orgulho. No entanto, temos de admitir que, do ponto de vista teórico, a possibilidade de uma escolha que conduza ao inferno exista, sem o que não haveria possibilidade de escolha.
A escolha de um recém-nascido é, pois, feita rapidamente e eles deslizam como anjos para a visão de Deus a quem são semelhantes.
 

O facto de não terem vivido a vida terrestre é uma perda para eles 

Todo o homem, qualquer que seja (mesmo um embrião), entra no reino de Deus na medida precisa do seu desejo de Deus. Quanto mais o coração do homem ama Deus e deseja vê-lo, mais o vê. Se a vida terrestre é querida por Deus, é que é útil. Existe um caminho cuja utilidade é aprofundar o desejo do coração do homem, é o da vida na terra.

A vida na terra é feita para as crianças. Ninguém tem o direito de lha recusar porque é uma caminhada de maturidade na humildade e no amor.

Portanto, a vida na terra é útil. É difícil, fonte de muito sofrimento mas, sobretudo, por causa desses sofrimentos, é fonte de sede de amar e ser amado. Pela ausência de Deus, pelo seu silêncio, pelas diversas provações que a semeiam, o coração do homem aprofunda-se. A vida é feita de tal modo que é difícil sair dela sem uma consciência profunda da nossa pequenez. A morte encarrega-se de o lembrar. Além disso, a aparição de Cristo na hora da morte, depois de um tempo tão longo de exílio, inflama o desejo de ver Deus, de uma forma inacreditável.

Quanto à criancinha morta antes de ter vivido, quando é acolhida pelo mundo dos santos, de certeza que não o rejeita. Mas dirige-se para ele com um pequeno desejo inocente, com um coração que não teve tempo de se preparar. A sua eternidade é directamente modificada por isso. Fica para sempre, num certo sentido, uma deficiente do coração. Morta sem ter vivido, é certo que chega quase infalivelmente ao Céu. Mas não tendo sido aprofundado o seu desejo de Deus, pelos diversos sofrimentos e faltas deste mundo, fica eternamente como que subdesenvolvida do ponto de vista do desejo e, em consequência, da visão de Deus. No entanto, não fica realmente desfavorecida para a eternidade[20]. É o que explica a irmã de Teresa Martin, que foi mais tarde Teresa do Menino Jesus: “Um dedal e um jarro estão cheios de água. Qual dos dois está mais cheio? Nenhum. Ambos estão perfeitamente cheios. O mesmo é no Céu. Todos os corações estão cheios na proporção do seu desejo.”

Nesta perspectiva, compreende-se que, para o Magistério, o aborto, qualquer que ele seja, mesmo o da pílula do dia seguinte, tome uma dimensão vertiginosa. Não é um pedaço de carne que desaparece mas um verdadeiro ser humano que dormia ainda, uma criancinha. Não há nenhuma diferença factual entre os santos Inocentes do Evangelho (mortos por Herodes) e estas crianças. E mesmo se as mães que praticam este acto não sabem o que acontece à criança, realmente, trata-se, para a Igreja, de um homicídio. Não há pecado da mãe se ela ignora o que faz[21], mas trata-se de matar um homem. Quando os homens deste século passarem para o outro mundo, serão acolhidos pelas centenas de milhões de crianças abortadas. O perdão ser-nos-á proposto. Mas, perdoaremos nós a nós mesmos?


 

NOTAS

[1] Tentei imaginar, o melhor que podia, a forma como as crianças e os deficientes profundos entravam na glória. Apenas três coisas são certas: 1. Não pode existir um limbo eterno, uma vez que a salvação é proposta todos os homens (dogma católico); 2. As crianças entram em Deus livremente, como todo o homem. Não o fazem, pois, “automaticamente”, pelo baptismo de água ou de espírito (humildade e amor). 3. Quando morreram, eram ainda incapazes d escolher. Portanto, aprenderam a liberdade. Mas, a forma como esta aprendizagem se fez, não compromete senão a mim. Tentei ser lógico. Optei por um tempo real de escola do Céu. Talvez não haja mais que um segundo de aprendizagem, se a força da aparição de Cristo é suficiente para fazer tudo de uma só vez?

[2] Bem como os deficientes profundos que permanecem crianças toda a vida. Estes dois pontos são uma certeza. O resto não compromete senão a mim. Talvez que nem haja nenhum tempo de aprendizagem? A simples aparição gloriosa do Céu tem talvez, por si só, o poder de os tornar capazes de escolha.

[3] 26 de Fevereiro de 1439 - Agosto de 1445, 17º Concílio ecuménico.

[4] Na sua constituição “Auctorem Fidei”, 28 de Agosto de 1794.

[5] Ver a bula “Ex omnibus afflictionibus”, Pio V, nº 49, Janeiro de 1572.

[6] Catecismo da Igreja Católica, 1258: “Desde sempre, a Igreja conserva a firme convicção que aqueles que sofrem a morte por motivo da fé, sem terem recebido o Baptismo, são baptizados pela sua morte por Cristo e com Cristo. Este Baptismo de sangue, tal como o desejo do Baptismo ou baptismo de desejo, produz os frutos do Baptismo, sem ser sacramento.”

[7] Ver C. I. C. 1261.

[8] Êxodo 2, 5.

[9] Lucas 16, 22.

[10] João 16, 24.

[11] Esta descrição simples da salvação das crianças não carece de fundamentos experimentais. Numerosas mães podem testemunhar, na sequência de uma doença grave de um filho, que ele se dizia visitado pelos anjos. A pequena vidente de la Salette recorda-se que no decurso da sua infância infeliz, era muitas vezes visitada por um anjo que a educava.

[12] Ana Catarina Emmerich, uma célebre estigmatizada do século XIX, teve a visão do estado das almas dos santos Inocentes: “O meu guia levou-me a um lugar onde pude ver o assassínio dos santos Inocentes e a grande magnificência com que Deus recompensou estas vítimas de uma idade tão tenra, embora não tivessem podido cooperar activamente na confissão do santo nome de Jesus. Admirei a imensidão da sua recompensa, e perguntava-me o que podia esperar, eu que, já desde há tanto tempo, tinha tido que sofrer por amor do meu salvador.” (Vie de Anne-Catherine Emmerich, Téqui, 1923, Tomo I, p. 502).

[13] O facto do ministro extraordinário do sacramento poder ser, em caso de necessidade, um leigo e mesmo um não baptizado, mostra suficientemente a necessidade do baptismo.

[14] Ver as experiências de morte iminente.

[15] Alguns cristãos pensam que a melhor solução para desenvolver o espírito de uma criança parece ser permitir-lhe reencarnar-se num outro corpo. Poderia então, através de uma vida normal na terra, desenvolver-se e aceder à capacidade de escolha. A reencarnação não é possível. O ser humano não é uma energia indiferente ao corpo que a recebe, mas um ser substancialmente realizado em torno de três graus de vida: física, psíquica e espiritual. A alma que unifica estas faculdades é feita para o seu próprio corpo, não para um outro. É fonte do ser de uma pessoa única e eterna. A crença na reencarnação, é fruto de civilizações que não acreditam na existência de pessoas mas no Universo como energia universal (panteísmo hindu e budista). É por isso que a Igreja acredita no purgatório e não na reencarnação das energias.

[16] Nada impede que Deus, de modo semelhante ao que fez para os anjos na hora da sua criação, infunda na sua inteligência as espécies inteligíveis necessárias para que eles tenham um conhecimento suficiente de si mesmos, do universo e do Criador.

[17] Falo aqui dos inocentes, não das crianças mortas com uma capacidade de escolha. Em Lourdes, Bernadette pergunta à Virgem se uma das suas amigas falecida estava salva. Ela responde: “está no purgatório até ao fim do mundo”.

[18] Carta de Inocêncio IV ao bispo de Tusculum (06-03-1224).

[19] J’entre dans la vie, cerf, p. 66

[20] Podemos suspeitar de uma outra perda, menos grave, no entanto. A educação recebida antes da entrada na glória, não compensa necessariamente de uma forma completa, as perdas sofridas pela inteligência por causa da morte prematura. Com efeito, o homem é um espírito que, por natureza, ascende ao inteligível por etapas. É por isso que está ligado a uma sensibilidade. A inteligência serve-se das imagens vistas para, pouco a pouco, construir os conceitos universais. Por exemplo, é ao ver os pais amarem-se que a criança aprende o que é o “amor”. Quando a inteligência não pôde atingir a plenitude do seu desenvolvimento, é possível que experimente dificuldade em amadurecer os conceitos dados em substituição, porque não está adaptada a isso. É provável que este deficiência da inteligência segundo o seu poder natural, seja largamente compensada pela comunicação da graça sobrenatural, e depois pela luz da glória, segundo esta palavra do Senhor: “Eu te bendigo, ó Pai, por teres escondido estas coisas aos sábios e aos inteligentes, e as teres revelado aos pequeninos”. De facto, a visão da essência divina não é comunicada em função da perfeição da natureza mas antes em função do fervor da caridade.

[21] A visão humanista ateia que domina hoje, explica estas reacções dos pais. Apenas conta a vida desta terra. Nessa hipótese, esforçam-se por dar todas as condições materiais e psicológicas para que a criança triunfe na vida. Por outro lado, a ausência de reflexão sobre uma sobrevivência da alma depois da morte, faz com que se defina uma pessoa humana pela sua capacidade de realizar um acto livre. Portanto, um embrião não é ainda uma pessoa humana.

 

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